Na trilogia de Cixin Liu, The Three-Body Problem Series, as forças que pretendem destruir os cientistas, e assim acabar com a produção de ciência na Terra, vêm do espaço sideral. O primeiro volume da trilogia foi adaptado como uma série pela Netflix. Os alienígenas planejam invadir o nosso planeta num futuro em que, sem ciência e tecnologia de ponta de defesa, seríamos incapazes de enfrentar uma invasão extraterrestre. Hoje, a anticiência pode provir da política, da religião ou de ideologias fortemente arraigadas, das redes sociais e de interesses econômicos distintos. As forças destrutivas da anticiência terráquea vêm de vários cantos, inclusive de países governados pela extrema direita, hoje representada pelas políticas implementadas pelo governo Trump. Os ataques à ciência que se praticam nos Estados Unidos da América são amplamente comentados por revistas e por associações no mundo todo. A postura da comunidade científica internacional pode-se resumir traduzindo o início de um recente artigo da revista Nature: “Trump 2.0: um ataque à ciência em qualquer lugar é um ataque à ciência em qualquer lugar. O presidente dos EUA, Donald Trump, pretende demolir a ciência e as instituições internacionais. A comunidade científica global deve tomar uma posição contra estes ataques.” Outro exemplo de anticiência vinda do Estado é visível na Hungria. Em várias declarações onde se diz desfavorável à preocupação global a respeito das mudanças climáticas, Viktor Orbán, primeiro-ministro de extrema direita da Hungria, declara: “As ‘elites ocidentais’ estão demasiado preocupadas com as quotas de carbono e não o suficiente com a queda das taxas de natalidade”. Isso sem falar da cruzada do Viktor Orbán contra a liberdade acadêmica, exemplificada pelo fechamento da Universidade Centro-Europeia (CEU). Para fechar esta curta lista de exemplos de Estados anticiência, é mister não esquecer que a postura anticiência do governo Bolsonaro não é coincidência: foi um projeto que se mostrou incompatível com a ciência, com a tecnologia, com o desenvolvimento sustentável desde seu início. Além de perseguir o ensino superior e toda a criação de ciência vinda das universidades públicas, foi responsável pela demora na vacinação contra covid, que causou mais de setecentas mil mortes no Brasil. Os movimentos anticiência, contudo, não se reduzem às políticas de Estado e podem ser identificados nos extremos do espectro político. Caminhos anticiência conspiram, hoje, para desacreditar todo o universo da ciência e os cientistas em particular. Segmentos sociais militam contra determinadas áreas da ciência somando-se a fenômenos identitários. Muitos oferecem explicações (e aplicações) distantes de quaisquer evidências científicas ou criam universos paralelos onde sequer os fenômenos observáveis são aceitos como realidades. O movimento antivax, por exemplo, é global, pode-se encontrar em setores da direita e da esquerda e constitui um dos mais poderosos grupos anticiência do planeta. A Organização Mundial da Saúde (OMS) identificou a hesitação vacinal como uma das ameaças à saúde global. De fato, os antivax podem ser responsabilizados pelos aumentos recentes de algumas das principais doenças, que incluem: sarampo, coqueluche, caxumba, rubéola e difteria. É bom lembrar que os movimentos antivax não se limitam a mentir sobre os efeitos deletérios de todas as vacinas, mas são ativamente contrários à pesquisa sobre vacinas e a toda a ciência que sustenta esta pesquisa. A variedade de teorias da conspiração antivacina, anticiência, e que também perseguem cientistas, é tamanha que requer um tratado até para descrevê-las. Muitas, porém, usam elementos que afirmam que os cientistas estão trabalhando para satisfazer a interesses escusos de grupos econômicos ou políticos. As redes sociais produziram uma avalanche de mentiras e de pseudocientistas que se transformam nos arautos da anticiência em temas específicos. A sequência de aparição dos pseudocientistas é sempre similar, a apresentação de um currículo, real ou imaginário, apresentando credenciais, seguido por um longo discurso que tenta convencer que as vacinas matam ou que são só as grandes empresas que atacam a homeopatia. A retórica anticientífica pode, também, ser alimentada por empresas, como demonstrado na negação, durante décadas, dos efeitos deletérios do consumo de tabaco pela indústria do cigarro ou por empresas de energia que minimizam as alterações climáticas. A oposição aos movimentos anticiência requer, necessariamente, justificativas da defesa da ciência, e, por consequência, dos cientistas. Reconhecer que nem toda ciência trouxe benefícios para a humanidade, ou que vacinas podem ter efeitos colaterais perigosos, faz parte da defesa da ciência que existe e a que necessariamente deve conduzir a humanidade a novos conhecimentos. A decisão política de realizar o Projeto Manhattan, que associou cientistas brilhantes para desenvolver a primeira bomba atômica, é bem conhecida. Os efeitos trágicos dos bombardeios atômicos em Hiroshima e Nagasaki têm origem na física, que descobriu a transformação de matéria em energia. Ao mesmo tempo, o uso pacífico da energia nuclear é evidente e os reflexos da ciência que hoje conhecemos sobre radioatividade têm papel crucial na medicina. Novas descobertas sobre reatores nucleares de fissão seguros, ou reatores de fusão, podem mudar a forma em que recebemos energia e colaborar para a diminuição do aumento da temperatura no planeta. Assim, reconhecendo as tragédias de Hiroshima e Nagasaki, bem como a ameaça constante de países que dominam a tecnologia capaz de produzir bombas atômicas, as descobertas da física determinaram muitos dos avanços recentes da humanidade que nos permitiram elevar a expectativa de vida, a qualidade de vida e a nossa capacidade de comunicação nestes últimos cem anos. Descobertas futuras da ciência podem, assim espero, evitar a desaparição da espécie humana nos próximos séculos por causa dos fenômenos extremos, que já estamos observando, causados pelas mudanças climáticas. Já as vacinas, que tomo como outro exemplo, têm sim efeitos colaterais que podem ser graves, mas são raros e sua ocorrência é tão baixa que os benefícios excedem em muitas ordens de magnitude os possíveis efeitos deletérios. Tomo como exemplo a vacina MMR, que protege as crianças contra sarampo, caxumba e rubéola. Esta vacina pode, sim, causar alergias perigosas numa taxa de uma em um milhão de doses aplicadas. Por outro lado, a taxa de mortalidade de crianças por sarampo das crianças não vacinadas é de três por mil doentes. Embora a mortalidade por caxumba seja extremamente baixa, as complicações decorrentes da doença têm uma mortalidade que varia de quatro a dez por cento. A mortalidade por rubéola varia com local e condição econômica e sanitária do doente, mas pode representar entre 1 e 0,1 por cento, sem considerar as complicações decorrentes da infecção pelo vírus. Também está amplamente provado que, apesar das teorias da conspiração dizendo o contrário, a vacina MMR não tem relação alguma com a aparição do transtorno autista. Olhando para as probabilidades de aparição de efeitos secundários e comparando aos perigos de mortes por doença, é evidente que a vacinação por MMR é absolutamente necessária. Sem ter que temer por agora desafios vindos do espaço sideral, a anticiência na Terra deve ser enfrentada. Somente a ciência existente e aquela que a humanidade ainda deve criar podem continuar a nos tornar mais cientes do nosso mundo e evitar a desaparição de nossa espécie por novas pandemias ou por fenômenos extremos causados pelas mudanças climáticas. (*) Por Hernan Chaimovich, Professor Emérito do Instituto de Química da USP e ex-presidente do CNPq