Neste texto se analisam correlações possíveis entre os movimentos que levam a procurar felicidade individual desvinculada do entorno e as suas consequências sociais. A confusão entre correlação e causalidade pode produzir erros profundos que se estendem desde fracasso escolar até políticas públicas sem sentido. O livro de Edgar Cabanas e Eva Illouz, Happycracia – Fabricando cidadãos felizes, foi central para ordenar estas ideias. A psicologia positiva, popularizada pelo psicólogo Martin Seligman, enfatiza a importância de estudar o que torna a vida gratificante e significativa, ao invés de se concentrar na doença. Seligman introduziu conceitos como bem-estar individual influenciando a direção da investigação e da prática psicológicas. Outros pesquisadores exploraram tópicos relacionados com a felicidade e as emoções positivas. Experimentar emoções positivas e uma sensação de alegria na vida (emoção positiva); estar profundamente envolvido e empenhado nas atividades, conduzindo frequentemente a um estado de fluxo (envolvimento); ter relações fortes e positivas com os outros, que proporcionam apoio e pertença (relações); encontrar um objetivo e um sentido para a vida, muitas vezes através de ligações a algo maior do que o próprio, como a comunidade ou a espiritualidade (significado) e perseguir e atingir objetivos, o que promove um sentimento de competência e de realização (realização). O modelo de Seligman, que começou a quantificar aspectos da felicidade e do bem-estar, encapsula as suas ideias mais amplas sobre os componentes que contribuem para uma vida plena. Em conjunto, estes componentes realçam a complexidade da felicidade, sugerindo que esta é influenciada tanto por fatores fixos (genéticos) como por fatores mutáveis (intrínsecos e externos). Embora alguns aspectos da felicidade possam ser influenciados pela genética, os indivíduos podem tomar medidas proativas para melhorar o seu bem-estar através do empenho, das relações, do significado e das realizações. Segundo os seguidores desta escola, a contribuição genética (G) pode ser responsável por cerca de 40% a 50% das diferenças nos níveis de felicidade entre indivíduos, sugerindo uma componente hereditária significativa para a felicidade de base. É provável que os fatores intrínsecos, incluindo os valores pessoais, os traços de personalidade (como o otimismo, felicidade e resiliência) (I) e os objetivos externos (E), também desempenhem um papel considerável. Embora a porcentagem exata possa variar, os fatores intrínsecos podem contribuir em cerca de 30% a 40% para a felicidade geral. As pessoas podem influenciar conscientemente estes fatores através do desenvolvimento pessoal e de mudanças de mentalidade. Os fatores externos (E), como as relações, o nível econômico, o ambiente e as circunstâncias da vida podem ser responsáveis por cerca de 10% a 20% da variação da felicidade (F). Assim, esta escola pode quantificar a felicidade individual como: F= 0,4 G + 0.2 E + 0,4 I Conforme os que aceitam esta duvidosa tentativa de quantificação dos componentes da felicidade, a possiblidade de o indivíduo modificar G ou E é limitada. Assim, a felicidade depende só do indivíduo (I). A desvinculação do entorno social, político e econômico faz com que cada um sinta que a relação com o universo independe da sociedade que o rodeia e, portanto, que a sua felicidade (F) é responsabilidade única e exclusiva das suas vontades e, claro, limitações. Psicologia positiva, individualismo e neoliberalismo A psicologia positiva e o individualismo estão interligados de várias formas, uma vez que ambos enfatizam o crescimento pessoal, a autorrealização e a busca da felicidade. O individualismo é uma perspectiva filosófica e social que enfatiza o valor do indivíduo, por sobre e além da sociedade à qual ele pertence. Defende a autonomia pessoal, a autossuficiência e a importância dos direitos e liberdades individuais na sociedade. A psicologia positiva também se centra na compreensão e promoção do bem-estar e da felicidade individual, e com isto alinha-se com culturas individualistas que dão prioridade à realização pessoal, à autonomia e à autoexpressão. A autorrealização está em sintonia com valores individualistas, onde as aspirações pessoais são realçadas. A psicologia positiva dá ênfase à identificação e utilização das forças e virtudes pessoais. Da mesma forma, o individualismo promove a ideia de que os indivíduos devem aproveitar os seus talentos e caraterísticas únicas para alcançar a satisfação e o sucesso pessoais. Em estruturas individualistas, é frequente dar-se ênfase à responsabilidade pessoal pela própria felicidade. A psicologia positiva incorpora esta ideia, encorajando os indivíduos a tomar medidas para cultivar o seu bem-estar através de estratégias diversas, independentes da sociedade que os rodeia. O individualismo e o neoliberalismo, como entendido a partir da década de 1990, são conceitos interligados em discursos sociais, econômicos e políticos. O neoliberalismo é uma filosofia econômica e política que, no final do século 20, defende a liberdade dos mercados, a desregulamentação, a privatização e a redução do tamanho do Estado e da sua intervenção na economia. O empreendedorismo individual e a dinâmica do mercado seriam os únicos fatores a impulsionar o crescimento econômico e o progresso social. Isto alinha-se com valores individualistas que dão prioridade à realização pessoal e à iniciativa própria. A crença na competição e na responsabilidade pessoal é fundamental tanto para o individualismo como para o neoliberalismo. As políticas neoliberais negligenciam os sistemas de apoio social e o bem-estar comunitário, o que pode exacerbar as desigualdades. Em muitas sociedades as ideias neoliberais moldaram as narrativas culturais sobre o sucesso, a responsabilidade pessoal e o papel do governo. Isto criou um ambiente em que a autossuficiência e a realização pessoal são celebradas, à custa do bem-estar coletivo. No entanto, a prevalência do neoliberalismo individualista como ideologia pode colocar em risco a coesão social, a equidade e o equilíbrio entre os direitos individuais e as responsabilidades coletivas. Individualismo e ascensão da direita A relação entre o neoliberalismo e a ascensão do extremismo e do populismo é um tema de discussão importante na ciência política e na sociologia. Vários pontos-chave descrevem a forma como as políticas e ideologias neoliberais contribuem para a emergência destes movimentos. O neoliberalismo dá prioridade aos mercados livres e à desregulamentação, o que leva a um aumento da desigualdade econômica. Embora a riqueza gerada pelas políticas neoliberais beneficie alguns poucos, muitos indivíduos são postos à margem, o que leva à frustração e ao ressentimento. Esta privação de direitos econômicos cria um terreno fértil para movimentos populistas e extremistas que prometem resolver estas queixas. As políticas neoliberais estão frequentemente associadas a uma crença nas soluções de mercado e na competência das elites tecnocráticas em detrimento da política. No entanto, quando estas elites não conseguem dar resposta às necessidades dos cidadãos comuns, surgem os movimentos populistas, posicionando-se como a voz do “povo comum” contra a elite corrupta e alienada. O neoliberalismo leva ao enfraquecimento das redes de segurança social e à diminuição dos laços comunitários, uma vez que a tônica é colocada na responsabilidade individual e nas soluções baseadas no mercado. O isolamento e alienação tornam os indivíduos mais suscetíveis a ideologias extremistas que oferecem soluções simples e bodes expiatório para as suas frustrações. As mudanças econômicas impulsionadas pelas reformas neoliberais podem desencadear uma reação cultural negativa entre grupos que se sentem ameaçados pela globalização, pela imigração ou pela perda de valores tradicionais. Esta ansiedade cultural pode dar origem a ideologias extremistas que visam grupos marginalizados ou promovem sentimentos nacionalistas, uma vez que apelam ao receio de perder a identidade cultural. O neoliberalismo está intimamente ligado à globalização. À medida que as economias se abrem, certas comunidades podem sofrer mudanças rápidas e instabilidade. Os movimentos populistas e extremistas podem ganhar força ao manifestarem-se contra a globalização, ao defenderem políticas protecionistas e ao apelarem a sentimentos nacionalistas. A combinação de dificuldades econômicas, mudanças culturais e desencanto com os partidos políticos tradicionais pode levar a uma maior polarização na sociedade. Os grupos extremistas prosperam frequentemente nestes ambientes, oferecendo soluções simples para problemas complexos, o que pode ser atrativo para os que se sentem desiludidos com a política dominante. Embora não estejam claros os nexos causais entre os fatores descritos acima (a psicologia positiva, a procura da felicidade e da riqueza… coaches, o individualismo crescente — fomentado em grande parte pelas redes sociais — e o neoliberalismo como doutrina econômica), suas consequências me parecem assustadoras. Algumas delas se traduzem no enfraquecimento das democracias e no crescimento das direitas extremas como temos observado. Serão correlações apenas? A tarefa de distinguir entre correlações e causalidade é do leitor. Mas levantar esta polêmica é atual e necessário. (*) Professor Emérito do Instituto de Química da USP e ex-presidente do CNPq